Pesquisadores processam montanha de dados de mais de 300 espécies de tartarugas viventes e extintas para identificar onde e quando evoluíram os ancestrais comuns das tartarugas modernas

A história evolutiva é uma paixão antiga. Desde criança eu sempre adorei conhecer a origem dos diversos grupos de animais e plantas, e descobrir as relações de parentesco entre uns e outros. Um bom exemplo são as aves. A partir da descoberta em 1861 da primeira ave fóssil, o arqueópterix, sabe-se que, no passado longínquo, as aves tinham dentes. Ainda na década de 1860, Thomas Huxley, amigo Darwin e defensor ferrenho da teoria da evolução, chegou a lançar a ideia de que o ancestral comum das aves teria sido um dinossauro.

A hipótese de Huxley estava correta, mas foi necessário aguardar outros 150 anos até que, graças a descoberta de fósseis de dinossauros emplumados, a comunidade científica finalmente aceitasse que, de fato, as aves são dinossauros. Mais especificamente, as aves pertencem a um ramo da linhagem dos dinossauros, o único ramo que sobreviveu à grande extinção do Cretáceo há 66 milhões de anos.

Assim como aconteceu com as aves, sabemos hoje que as serpentes descendem de lagartos que começaram a perder as patas há mais de 100 milhões de anos. Ou que baleias e golfinhos têm como ancestral comum um carnívoro terrestre que trocou o continente pelos oceanos há mais de 50 milhões de anos.

Com a grande linhagem das tartarugas, a ordem Testudinata, não acontece o mesmo. Testudines ou quelônios são nomes que agrupam todas as formas viventes (ou modernas) de tartarugas, como os cágados (de água-doce), os jabutis (terrestres) e as tartarugas propriamente ditas, as quais são especificamente marinhas (leia a reportagem “60 milhões de anos na vida das tartarugas-marinhas”).

origem das tartarugas - Odontochelys semitestacea
Odontochelys semitestacea foi um ancestral longínquo da linhagem das tartarugas. Viveu na China há 220 milhões de anos, ainda tinha dentes, rabo, e uma carapaça incompleta
origem das tartarugas - Eunotosaurus-africanus
Eunotosaurus africanus é o mais antigo membro conhecido da linhagem das tartarugas. Viveu na África do Sul há 265 milhões de anos, ainda não tinha carapaça, e vivia em tocas

 

O PRIMEIRO MISTÉRIO DOS QUELÔNIOS

Tartarugas são um mistério cuja origem só agora começa a ser desvendada. Os mistérios, aliás, são dois, e isto se deve à precariedade do registro fóssil em dois momentos cruciais da história evolutiva destes répteis com casco.

O primeiro desafio reside do fato de não sabermos exatamente onde a linhagem das tartarugas se encaixa na grande árvore-da-vida. Em outras palavras: quais, dentre os grandes grupos répteis, seria o mais próximo das tartarugas? Podem ser os escamados (lagartos, serpentes e os extintos mosassauros), mas também podem ser os arcossauros, linhagem que congrega crocodilianos, dinossauros (e aves), e formas extintas como os pterossauros e os grandes répteis marinhos (ictiossauros e pliossauros), entre outros.

Até o momento, sabe-se apenas que o animal fundador da linhagem Pan-testudines, o grupo dentro do qual a ordem Testudinata evoluiu, viveu no período Permiano, há mais de 265 milhões de anos. Talvez esse ancestral tenha sido o réptil com uma carapaça incompleta, como o chinês Odontochelys semitestacea, ou ainda o réptil com costelas largas e de hábito fossorial, como o sul-africano Eunotosaurus africanus. Sua identidade exata, porém, é desconhecida.

origem das tartarugas tartaruga da amazonia
A tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa) é a maior entre as 79 espécies da ordem Pleurodira
origem das tartarugas - Giant tortoise galapagos
Os jabutis gigantes das ilhas Galápagos são um exemplo da diversidade da ordem criptodira, com 266 espécies viventes

 

UM SEGUNDO MISTÉRIO

Mas esta reportagem não está focada na origem da linhagem de todas as tartarugas, e sim no outro grande desafio dos testudinólogos, os estudiosos das tartarugas. Eles também desconhecem quem teria sido e quando viveu o ancestral comum de todas as tartarugas modernas, distribuídas em duas subordens: as pleurodiras e as criptodiras.

As pleurodiras (79 espécies viventes) são tartarugas que precisam virar a cabeça para o lado para poder escondê-la no interior da carapaça. Elas têm sua origem no antigo supercontinente austral Gonduana, onde permaneceram, uma vez que são encontradas apenas na nossa América do Sul, na África e na Austrália. Exemplos de pleurodiras brasileiras são a tartaruga-da-amazônia, o tracajá, a tartaruga-mordedora e o jabuti (Chelonoidis denticulatus).

Já no caso das criptodiras, elas conseguem recolher a cabeça diretamente para dentro da carapaça, sem precisar virá-la para o lado. As criptodiras também evoluíram no Gonduana, de onde se espalharam pelo planeta. Elas formam o maior grupo das tartarugas viventes, com 266 espécies. Exemplos são as tartaruga-marinhas, a brasileira tartaruga-tigre-d’água (ou tartaruga-tigre), e os jabutis gigantes das ilhas Galápagos.

O estado do conhecimento atual da origem das tartarugas modernas têm um problema. Os dados com que trabalham os paleontólogos e os biólogos moleculares não conversam entre si. O relógio molecular sugere que o ancestral das tartarugas modernas viveu há 210 milhões de anos, no Triássico superior. Mas a mais antiga tartaruga moderna viveu em Cuba há 155 milhões de anos, no Jurássico superior. O dilema dos testudinólogos se resume a entender como preencher esta descomunal lacuna de 55 milhões de anos.

origem das tartarugas - Notoemys oxfordiensis
A tartaruga-marinha Notoemys oxfordiensis (abaixo à esq.) viveu em Cuba há 155 milhões de anos. É o mais antigo membro conhecido de uma tartaruga moderna

 

A ORIGEM DAS TARTARUGAS NO PANGEIA

Só agora, após dez parágrafos de leitura (em qualquer jornal ou revista me puxariam as orelhas por causa disso), é que você pode compreender qual não foi o meu espanto quando passei os olhos num artigo científico com o seguinte título: “A filogenômica reconcilia dados moleculares com o rico registro fóssil sobre a origem das tartarugas vivas”, publicado em março na revista Molecular Phylogenetics and Evolution.

O espanto só aumentou quando percebi que se tratava de um trabalho de cientistas brasileiros. Que orgulho!

Pesquisadores das Universidades Federais do Rio de Janeiro e de Minas Gerais reuniram uma quantidade até o momento insuperável de indícios moleculares e paleontológicos, que foram transformados num volume de dados assustador. Os dados, por sua vez, foram mastigados durante milhares de horas de processamento, até se obter este resultado: o ancestral comum das tartarugas modernas viveu entre 191 e 182 milhões de anos atrás, no período Jurássico inferior.

Trata-se de um resultado surpreendente, ao apontar a origem das tartarugas modernas bem no meio da lacuna entre as evidências moleculares e as evidências fósseis. “É a primeira vez que um trabalho genômico coloca consistentemente a origem das tartarugas no Jurássico. Todos os trabalhos anteriores apontavam para o Triássico”, explica o autor principal do artigo, o biólogo Alexandre Pedro Selvatti, do Laboratório de Biologia e Genômica Evolutiva, do Instituto de Biologia da UFRJ

Segundo os pesquisadores, este intervalo de tempo entre 191 e 182 milhões de anos atrás coincide com o início da fragmentação do supercontinente Pangeia, evento que deu origem ao Gonduana e ao continente setentrional Laurência.

“Agora sabemos que os ancestrais das tartarugas modernas estavam espalhadas pelo Pangeia antes de sua fragmentação”, afirma Alexandre. A partir daí, a deriva continental foi afastando os fragmentos do Pangeia, criando barreiras oceânicas a separar as tartarugas. Formaram-se assim as condições para que os dois supercontinentes (e seus filhotes continentais atuais) servissem de laboratório para a evolução em separado das diversas famílias de pleurodiras e criptodiras.

Segundo Alexandre, a radiação inicial das criptodiras permaneceu na Laurásia, e sua diversificação ocorreu à medida que todas as suas principais linhagens expandiram sua distribuição pelos continentes durante o Cenozoico, os últimos 66 milhões de anos. “Embora a origem asiática das criptodiras já seja um consenso entre os testudinólogos, nós fornecemos a primeira hipótese detalhada da evolução de Criptodira no Hemisfério Sul ao longo de todo o Cenozóico”, diz ele.

 

RECONCILIAÇÃO CIENTÍFICA

“O grande achado do trabalho é a reconciliação dos dados moleculares com o registro fóssil”, diz a bioinformata Ana Carolina Junqueira, chefe do Laboratório de Biologia e Genômica Evolutiva da UFRJ, e uma das co-autoras do artigo.

Para chegar até tal reconciliação, o trabalho foi insano. Os pesquisadores recorreram a um volume de dados nunca visto, moleculares e fósseis, para a elaboração de uma filogenia de tartarugas.

Os dados moleculares utilizados foram os genomas nucleares de 25 espécies de tartarugas, cada uma com 2 bilhões de pares de bases, compondo entre 19 mil e 24 mil genes, dependendo a espécie. Mas os pesquisadores não precisaram trabalhar com os 25 genomas completos. “Para efeito do estudo, precisamos incluir apenas os genes ortólogos”, explica Ana. Genes ortólogos são os genes em diferentes espécies que evoluíram de um ancestral comum. No caso das tartarugas, há 3.904 genes ortólogos. Contando os genes ortólogos de todas as 25 espécies estudadas, chegou-se ao total de 10 milhões de pares de base nucleares, as que foram as usadas no processamento.

Os pesquisadores também recorreram ao genoma mitocondrial. O mitogenoma está presente no núcleo das mitocôndrias nas células, sendo transmitido apenas pela linhagem materna. O mitogenoma é 100 mil vezes menor do que o genoma nuclear. Então, em vez de 2 bilhões de pares de bases, o mitogenoma tem de 15 a 20 mil pares. Isso significa que cada uma das 147 espécies cujo mitogenoma foi incluído no estudo contribuiu com até 20 mil pares de bases para a montanha de dados do universo de análise.

Por fim, os fósseis. Para calibrar os resultados moleculares, ajustando-os às evidências conhecidas do registro fóssil, os pesquisadores incluíram dezenas de variáveis morfológicas de 141 quelônios fósseis.

bioinformatics

 

MASTIGANDO DADOS

“Meu trabalho foi reduzir esta informação biológica, todos os dados moleculares e morfológicos que reunimos, em dados para computadores”, explica Ana. Ela estima que, ao todo, o trabalho envolveu o processamento de 5 terabytes de dados. “Quando abro o arquivo de algum genoma, ele nada mais é do que um livro de texto com bilhões de caracteres”.

Para processar sua montanha de dados, os pesquisadores recorreram a um servidor potente nem Cingapura, pois o servidor da UFRJ não era parrudo o suficiente para dar conta da tarefa num período exequível. “Só para obter as datações, por exemplo, o servidor de Cingapura ficou trabalhando direto mais de um mês. Ao todo, o trabalho consumiu milhares de horas de computação”, revela Ana.

“A gente passa a maioria do tempo no computador, explorando os dados. Ao fazê-lo, consigo rastrear a evolução dos genes ao longo de todas as linhagens, ao longo de 500 mil gerações”, explica a bioinformata. Rodar os dados ao longo de mais de 500 mil gerações significa, de forma muito simplificada, recuar no tempo mais de 500 mil gerações de tartarugas, uma de cada vez, até eventualmente identificar-se quando e onde viveram os ancestrais comuns das tartarugas modernas.

Foi em Pangeia entre 191 e 182 milhões de anos atrás, no Jurássico inferior. Pela mesma época, os dinossauros começavam a assumir proporções monumentais. Ainda não havia aves. Nem flores. Era um mundo muito diferente daquele que conhecemos. Mas um personagem daquele tempo tão distante persevera entre nós. Estes inofensivos répteis blindados.

Ciência Brasil

Entrevista para Peter Moon, 22 de Abril de 2023

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